1 PRINCIPAIS CONCEPÇÕES
O Senhor Jesus Cristo se dirige à sua igreja não apenas por meio da linguagem da Escritura, rica de simbolismos da revelação, mas também por meio dos sinais sacramentais por ele determinado.[1] Dois sacramentos foram instituídos pelo Senhor Jesus para serem observados pela igreja: O primeiro é o batismo, que é observado apenas uma única vez, não somente para a admissão na igreja visível, mas, significa o nosso enxerto em Cristo, participação dos benefícios do pacto da graça e o nosso comprometimento de pertencermos no Senhor;[2] O segundo sacramento, é a ceia do Senhor, que, diferentemente do batismo, deve ser observado repetidamente ao longo de toda a vida cristã, mas igualmente, sendo um sinal e selo do pacto da graça. Este último será o foco deste artigo, versando acerca das principais concepções sobre a presença real ou união sacramental de Cristo na ceia do Senhor.
1.1 Concepção Católica Romana
De acordo com o ensino católico, quando Jesus levantou o pão no cenáculo e disse: “isto é o meu corpo”, o pão e o vinho se transformavam no corpo e no sangue de Cristo. Ou seja, a igreja de Roma concebe a união sacramental num sentido físico. Conquanto a substancia de ambos seja transformada, as suas propriedades permanecem as mesmas. Mesmo após a mudança da substancia os elementos têm aparência e gosto de pão e vinho.[3] Esta é a chamada doutrina da transubstanciação. Palavra que ocorreu pela primeira vez no século 12, mas a coisa expressa por ela já havia sido estabelecida anteriormente.[4] A base escriturística para isto acha-se nas palavras da instituição, “isto é o meu corpo” que aparece nas seguintes passagens (Mt 26:26; Mc. 14:22; Lc 22:19; 1Co 11:23,24), além destas passagens usa-se como base também o texto de Jo 6:50. Paschasius Radbertus[5], ensinava que o corpo de Cristo presente na eucaristia era o corpo físico, nascido de Maria, e que nós vivemos por causa dele porque o comemos.[6] Ele concorda com Ambrósio de Milão ao afirmar que a Eucaristia contém o corpo, verdadeiro e histórico, de Jesus Cristo.[7] Segundo Paschasius, Deus é a própria verdade e, portanto, suas palavras e atos devem ser verdadeiros. Assim, a proclamação de Cristo durante a Última Ceia de que o pão e o vinho eram seu corpo e sangue devem ser entendidos literalmente. O literalismo de Paschasius certamente não é a posição majoritária entre os Pais da Igreja, a exemplo de Agostinho.[8] Entretanto, em 1079, Berengarius e o quarto Concílio de Latrão em 1215, também concordavam que o vinho e pão eram substancialmente convertidos, o pão sendo transubstanciado em carne e o vinho em sangue.[9] Na Igreja e teologia católica romana, declarada no concílio de Trento, na sessão XIII, os elementos são transformados, pela palavra de consagração, no corpo e no sangue. E que o Senhor Jesus ao pronunciar essas palavras, simultaneamente designou os discípulos e injetou nas palavras que pronunciou poder de transformar a substancia do pão e do vinho.[10] Essa transformação é feita por completo, toda a substância, como declarada no Concílio:
Pela consagração do pão e do vinho se efetua a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo Nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue. Esta conversão foi com muito acerto e propriedade chamada pela Igreja Católica de transubstanciação.[11]
Além do mais, aquele que negar essa doutrina deve ser excomungado, como reza o cânone 2° do Concílio de Trento sobre a santa eucaristia.
[...] e negar aquela admirável e singular conversão de toda a substância de pão no corpo, e de toda a substância do vinho no sangue, ficando apenas as espécies de pão e de vinho, que a Igreja com suma propriedade (aptissime) chama de transubstanciação — seja excomungado.[12]
Em conseqüência desse conceito, no pensamento de Roma, ela não é somente um sacramento: ela primariamente é um sacrifício, o sacerdote executa o sacrifício da cruz uma vez mais, e oferece a Deus.[13] No período do inicio do século II e o fim do século III, a ceia do Senhor era vista não apenas como um conforto de Cristo para uma igreja perseguida, mas como um sacrifício oferecido pelo sacerdote somente na igreja, e era conhecido como sacrificium.[14] Quando Cristo pronunciou essas palavras “isto é o meu corpo”, ele, ofereceu a si mesmo a Deus. Da mesma forma, quando disse “fazei isto em memória de mim”, ele por meio desse sinal, ordenou que seus sacerdotes repetissem o sacrifício diariamente (Ml 1:11). “A única diferença é que na cruz, houve um sacrifício cruento, enquanto na missa, o sacrifício é incruento”.[15]
Como Cristo está presente nos elementos de pão e vinho, eles devem ser cuidadosamente preservados como declara na sessão XIII, XXI-XXII, do concílio de Trento[16], mantidos sob custódia para que as pessoas possam adorá-los, para serem carregados em procissão solene na festa de Corpus Christi e só podem ser servidos aos enfermos.[17]
Depois da doutrina da justificação, nenhuma questão foi mais intensamente debatida durante a Reforma do que a doutrina da Ceia do Senhor. Embora os reformadores nem sempre concordassem entre si quanto ao significado do sacramento, eles estavam unidos na oposição ao ponto de vista da igreja católica romana.
1.2 Concepção Luterana
Lutero, em 1524, sustentou que o corpo de Cristo, em harmonia com a vontade de Deus, está realística e substancialmente presente nela, com e sob os elementos da Ceia do Senhor.[18] Lutero em seu catecismo menor, ele conceitua a Santa Ceia da seguinte maneira: “É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, para ser comido e bebido, sob o pão e o vinho, por nós cristãos, como Cristo mesmo o instituiu”.[19]
Lutero rejeitou a doutrina da transubstanciação defendida pela concepção católica romana[20] e a substituiu pela doutrina correlata da consubstanciação, terminologia não aplicada por Lutero, mas posteriormente por seus seguidores.[21] Ele também negou a idéia de que a missa seja um sacrifício, assim como o sacerdotalismo sustentado pelo catolicismo romano. Segundo ele o pão e vinho continuam sendo o que são, mas, miraculosamente e misteriosamente, há na Ceia do Senhor, a presença real da pessoa completa de Cristo, corpo e sangue, nos elementos, sob eles e junto deles.[22] Ele interpretou isso como sendo análogo à presença da natureza divina de Cristo em sua natureza humana.[23] Ou seja, os elementos não são transformados em corpo e sangue de Cristo, mas estes estão presentes com os elementos.[24] Quando se diz sobre a presença local da natureza física de Cristo, não significa que a natureza humana de Cristo não está em nenhuma outra parte, como por exemplo, no céu; mas, significa que a natureza física de Cristo está localmente presente na ceia do Senhor.[25] Uma base bíblica para dar apoio a essa posição é 1Co 10:16: “Não é verdade que [...] o pão que partimos é uma participação no corpo de Cristo?”. Um exemplo sugerido é que o corpo de Cristo está presente no pão como a água está presente numa esponja – a água não é a esponja, mas está presente “em, com e sob” a esponja, e está presente onde quer que a esponja esteja.[26] A analogia feita por Lutero à presença da natureza divina de Cristo em sua natureza humana, como o fogo e o ferro, é que a substância do ferro não deixa de existir quando a substancia do fogo interpenetra-se nele, aquecendo-o até alta temperatura.[27]
Diferentemente dos católicos romanos, a substância do pão e do vinho, não era substituída pela substância do corpo e do sangue, mas essas eram unidas a outra de forma misteriosa, de maneira que estão realmente presentes no pão e no vinho, e são recebidos com eles, quando são tomados pela pessoa que comunga.[28]
1.3 Concepção Zwingliana
Lutero e Zwinglio concordavam em muitos aspectos da ceia, como por exemplo: a necessidade da participação da congregação e a negação de que a ceia envolve um sacrifício e ou a transubstanciação. Mas, discordavam quanto à presença de Cristo na Ceia.[29] A tendência do elemento Zwingliano era fazer do aspecto supernatural dos sacramentos menos que seus associados faziam. Ele ensinava que a ceia nada mais é do que um alimento da alma, e Cristo instituiu a ordenança como um memorial dele próprio.[30] No comer o corpo de Cristo, Zwinglio não vê nada mais nem mais elevado do que comer em seu nome, o ato de confiar em sua morte.[31] Zwinglio, destacou a importância do sacramento para relembrar a morte de Cristo e sua eficácia em favor dos crentes, assim, a ceia do Senhor é, em essência, uma comemoração da morte de Cristo.[32] O valor do sacramento está simplesmente em receber pela fé os benefícios da sua morte. Ele argumentou contra a presença física de Cristo na ceia do Senhor, mas não escapou inteiramente do perigo de reduzi-la a um simples memorial.[33] As confissões que se conformaram com a concepção de Zwinglio são a “Confissão Tetrapolitana”, a “Primeira Basílio” e a “Primeira Helvética”. Em “Sincera Confissão dos Ministros da Igreja de Zurique”, datada de 1545, declara:
“Ensinamos que o grande desígnio e fim da Ceia do Senhor, aquilo para o qual todo o serviço se dirige, é a memória do corpo de Cristo dedicado, e de seu sangue derramado para a remissão de nossos pecados. Essa memória contudo, não pode ser concretizar-se sem genuína fé. [...]”[34]
Segundo Luis Berkhof, a ênfase de Zwinglio recai no que o crente promete no sacramento e não no que Deus promete.[35]
1.3 Concepção Reformada
João Calvino tratando sobre a Ceia do Senhor no capítulo XVIII do livro IV das institutas, de início declara que satanás, “como que espalhando suas trevas, esforçou-se em ofuscar e obscurecer a santa Ceia de Cristo, para que nem mesmo sua pureza fosse mantida na igreja. [...] quando cegou a quase todo mundo com o mais pestilento dos erros [...]”.[36] Calvino deixa claro quais erros ele estava se referindo e diz: “[...] o de crer que a missa é sacrifício e oferenda para alcançar a remissão dos pecados.”[37] João Calvino adotou uma posição intermediária entre Lutero e Zwinglio. Quando Calvino entrou em cena, estava absolutamente do lado de Zwinglio na medida em que rejeitava firmemente qualquer tipo de presença física, local ou substancial de Cristo nos sinais de pão e vinho. “Isto é o meu corpo” declara Calvino em seu comentário aos Coríntios: “devemos ter em mente que ele está falando figuradamente [...]”.[38] Entretanto, segundo Calvino o sacramento não está meramente vinculado a morte de Cristo, como pensava Zwinglio, mas também à presente obra espiritual de Cristo que agora vive na glória.[39]
Embora negasse a presença do corpo e sangue de Cristo na Ceia do Senhor no sentido defendido pelos romanistas e luteranos como foi visto anteriormente, Calvino afirmava uma presença dinâmica deles. O corpo de Cristo está no céu, mas aquele corpo glorificado de lá irradia a influência do Espírito, da qual os crentes, na Ceia, são os recipientes.[40] A expressão que se utiliza é que o corpo e sangue de Cristo estão virtualmente presentes, ou seja, as virtudes e efeitos do sacrifício do corpo do redentor na cruz se fazem presentes no sacramento e, neste, são comunicados pelo poder do Espírito Santos, que utiliza o sacramento como seu instrumento, segundo a sua vontade soberana.[41]
Esta mesma ênfase pode ser vista nos documentos confessionais reformados, como no Catecismo de Heidelberg (perguntas 75 a 82), na Confissão Belga (artigo 35) e, especialmente, na Confissão de Fé de Westminster (XXIX. 1-8). É importante destacar, que os seguidores de Zwinglio, uniram-se a Calvino, ao aderir ao Consensus Tigurinus (Consenso de Zurich), em 1549. Por meio do consensus Tigurinus, o conceito de Calvino sobre a presença espiritual do corpo e sangue de Cristo na Ceia prevaleceu entre as igrejas reformadas.[42] Na concepção reformada a presença de Cristo na Ceia, não se dá de forma física e corpórea, mas sua presença no sacramento é espiritual ou dinâmica. O resplendor do Espírito nos transmite a comunhão do corpo e sangue de Cristo.[43] Os sinais do pão e do vinho não foram escolhidos arbitrariamente, mas é eminentemente adequado para nos dar uma impressão da comida e bebida espiritual que Cristo, preparou para a nossa alma.[44]
Referências
[1] CLOWNEY, Edmund. A Igreja: série teologia cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p.253.
[2] HODGE, A. A., Confissão de Fé de Westminster Comentada. 2ª Ed. traduzido por Valter G. Martins. São Paulo: Os Puritanos, 2007, p. 457.
[3] BERKHOF, Louis, Teologia Sistemática. 3ª edição, tradução de Odayr Olivetti, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 601.
[4] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada: Espírito Santo, Igreja e Nova Criação. Vol 4. São Paulo:Cultura Cristã, 2012, p. 560.
[5] A mais conhecida e influente obra de São Paschásius, "De Corpore et Sanguine Domini" ("Do Corpo e Sangue do Senhor"), escrita entre 831 e 833, é uma exposição sobre a natureza da eucaristia. Escrita originalmente como livro didático para os monges de Corbie é o primeiro tratado extenso sobre o sacramento da Eucaristia no mundo ocidental. Obras, em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pasc%C3%A1sio_Radberto>. Acesso em 24/06/2015
[6] CLOWNEY, A Igreja: série teologia cristã, p.270.
[7] KLEIN, Jeremias Carlos. Os Sacramentos na Tradição Reformada. São Paulo:Fonte Editorial, 2015, p. 26.
[8] CLOWNEY, A Igreja, p. 270.
[9] BAVINCK, Dogmática Reformada, p. 561.
[10] Concílio Ecumênico de Trento, Montfort Associação Cultural, em < http://www.montfort.org.br/concilio-ecumenico-de-trento-2/#sessao13> Acesso em: 25/06/2015.
[11] Ibid.
[12] Ibid.
[13] BANNERMAN, James. A Igreja de Cristo. Um tratado sobre a natureza, poderes, ordenanças, disciplina e governo da igreja cristã. Recife: Os Puritanos, vol. 1e 2, 2014, p. 608.
[14] FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 941.
[15] BAVINCK, Dogmática Reformada, p. 561.
[16]Concílio Ecumênico de Trento, em < http://www.montfort.org.br/concilio-ecumenico-de-trento-2>. Acesso em: 25/06/2015.
[17] BAVINCK, Dogmática Reformada, p. 562.
[18] Idem.
[19] LUTERO, Martinho. Catecismo Menor. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia S. A. 1962, p. 156.
[20] LUTERO, Catecismo Menor, p. 159.
[21] BERKHOF, Teologia Sistemática, p. 602.
[22] BERKHOF, Teologia Sistemática, p. 602.
[23] BAVINCK, Dogmática Reformada, p. 562.
[24] GRUDEM, Wayne. Manual de Doutrinas Cristãs: teologia sistemática ao alcance de todos. São Paulo: Editora Vida, 2007, p. 431.
[25] BERKHOF, Teologia Sistemática, p. 602.
[26] GRUDEM, Manual de Doutrinas Cristãs, p. 431.
[27] ERICKSON, Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1997 p. 469.
[28] BANNERMAN, A Igreja de Cristo, p. 621.
[29] FERREIRA; MYATT, Teologia Sistemática, p. 943.
[30] HODGE, Charles. Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1483.
[31] BAVINCK, Dogmática Reformada, p. 564.
[32] ERICKSON, Millard J. Introdução à Teologia Sistemática, p. 470.
[33] FERREIRA; MYATT, Teologia Sistemática, p. 944.
[34] HODGE, Teologia Sistemática, p. 1483.
[35] BERKHOF, Teologia Sistemática, p. 603.
[36] CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 2, São Paulo: Editora UNESP, 2009, P. 825
[37] Ibid.
[38] CALVINO, João. 1 Coríntios. 2°ed. São Paulo: Edições Parakletos, 2003, p. 354.
[39] BERKHOF, Teologia Sistemática, p. 603.
[40] HODGE, Teologia Sistemática, p. 1484.
[41] HODGE, A. A., Confissão de Fé de Westminster Comentada. 2ª Ed. traduzido por Valter G. Martins. São Paulo: Os Puritanos, 2007, p. 487.
[42] FERREIRA; MYATT, Teologia Sistemática, p. 945.
[43] ERICKSON, Introdução à Teologia Sistemática, p. 470.
[44] BAVINCK, Dogmática Reformada, p. 581.
[45] VOS, Johannes Geerhardus. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Puritanos, 2007, p. 552.
Sugestões de Literaturas:
A Ceia do Senhor: Três Sermões pregados em preparação para e na administração da Ceia do Senhor.John Owen (Eu quero!)
À mesa com Jesus: as palavras de despedida do Salvador. Sinclair B. Ferguson (Eu quero!)
A Ceia do Senhor, Thomas Watson. (Eu quero!)
| Outras sugestões de literaturas clique aqui!
Ao adquirir alguma obra literária física ou ebook através do nosso link, você está contribuindo
para a manutenção desse site.
Ao clicar (Eu quero!) você será direcionado para o marketplace da Amazom. Por gentileza, coloque no carrinho o pedido caso não queira adquirir a literatura no momento.
Comments